ROSÂNGELA DORAZIO

Através

Texto Katia Canton

Gaby Indio da Costa Arte Contemporânea

19/08 – 17/09/2019


A arte, para Rosângela Dorazio, parece consistentemente tomar corpo através de fragmentos de uma janela.

Real ou imaginária, a ideia dessa passagem tem para a artista o papel de possibilitar um olhar de minúcias, de detalhes e fragmentos, que permitem enxergar pequenezas, aos poucos somadas a uma moldura maior.

Outra estratégia é uma prática que se compromete com a construção de uma imagem até que, num certo momento, ela seja seguida de um desmanche. Não se trata aqui de um desmanche completo, capaz de apagar os traços do que se constituiu até então, mas sim de uma ação que nos dá a dimensão da própria fragilidade, do erro e da efemeridade de todos os gestos vivos.

É a partir da lógica de somatória de partes, que lembram as múltiplas vidraças de uma janela, e da composição que se arremata em escorrimentos, que a série atual se apresenta.

Na verdade, a atitude construtiva (e contemplativa, também) faz parte da própria identidade da artista. Desde o início da carreira, trabalhando com gravura, Rosângela Dorazio se interessava pela transformação das matrizes, que eram recortadas e acabavam por deixar transparecer vazios, cortes e falhas. Já se configurava ali um projeto de olhar através.

Posteriormente, em seu processo de fotografar e raspar as imagens, vontade de se desfazer de uma imagem pré-estabelecida ganhou um corpo nítido e se materializou como jeito de pensar arte e vida.

Os procedimentos que compõem os desenhos da exposição Através se iniciaram com o projeto de ocupação de uma casa, o que incluía registros de objetos de uso cotidiano, como bules e xícaras grandes, desenhados em contornos com nanquim, e posteriormente recebiam manchas de café líquido, o que acabava por diluir detalhes de imagens e criar uma pigmentação de fundo, construída com a ação do acaso.

Num segundo momento, essa ação foi incorporada numa outra série realizada para o MACS (Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba), onde a arquitetura do local era desenhada com suas respectivas colunas, paredes e perspectivas, e então recebia doses esparramadas de café.

Para além das imagens domésticas e arquitetônicas, o olhar de Dorazio voltou-se, nos últimos anos, para a observação da natureza ao redor. Uma natureza vista literalmente da janela.

Em seu trabalho atual, a artista limita a paleta do nanquim aos marrons e verdes e aplica seus traços com uma desenvoltura expressionista. Em suas escolhas compositivas, as cenas podem surgir de visões do campo, da cidade, ou das vidraças de um museu. Para além da moldura, são os pequenos banhos de café que acabam por se tornar os protagonistas da imagem. Porque são eles que batizam as cenas finais e se tornam os responsáveis por uma sensação de que aquelas paisagens, árvores, relvas, frutas, janelas e tudo mais estão de fato vivas. Em outras palavras, o café é a poção de potência para os desenhos feitos de atravessamentos feitos Através.

Nas obras da exposição, os limites entre os traços de nanquim que materializam construções de arquitetura (as janelas) e o mundo da vegetação (o que está fora) são misturados na liquidez do café. E assim, podem borrar tons e texturas, enrugar suavemente o papel, criar dúvidas sobre o uso de materiais utilizados, provocar sensações de translucidez e mistério. E, nisso tudo, celebrar um hibridismo necessário para a vitalidade da arte. Porque, sabemos nós, sem mistura não há vida.

Katia Canton