RAFAEL PAGATINI

Fissuras

Curadoria Gabriel Bogossian

Temporada de Projetos do Paço das Artes – MIS, Museu da Imagem e do Som

02/08 – 04/09/2016


“Hoje, a paisagem é outra, mas as grades, ainda as trago comigo, plantadas duramente na memória”1.

Retrato Calado, de Luiz Roberto Salinas Fortes

Já não era sem tempo que a arte atual pelas bandas de cá despertasse seu olhar para a sombria história social recente do país, dedicando-se ao escrutínio desassombrado dos anos obscuros de ditadura militar (1964 a 1985) que marcaram de forma indelével a vida pública e, por conseguinte, a vida privada de nossos concidadãos; tragédia e trauma das últimas gerações, do nível pessoal ao coletivo. O que nossos vizinhos latino-americanos trataram com a devida urgência, nós agora trazemos timidamente à baila. Entende-se inclusive como marco histórico desse despertar as ações oficializadas da Comissão Nacional da Verdade2.

Anos antes, já ao final de outras ditaduras no continente sul-americano, as produções cinematográficas, literárias e plásticas revisitaram os anos desses regimes antidemocráticos e as suas consequências traumáticas, combatendo a ameaça do esquecimento e do convívio naturalizado com este passado. Destarte, trata-se de um entendimento da situação enquanto problema ético. Talvez seja essa a chave de leitura para a qual nos furtamos nos últimos anos, mas já há muito incisiva em exemplos como o livro de Luiz Roberto Salinas Fortes, Retrato Calado3. Se nesse caso a escrita exorcizava uma vivência traumática e dolorosa, hoje a produção cultural ensaia, além da rememoração, a desconstrução programática da história oficial e a recusa à anestesia e à neutralização estrategicamente semeada nos anos seguintes àquele projeto político de poder.

Arrisca-se dizer que essa paralisia frente ao passado e o retardamento do trato de um assunto tão complexo e urgente vem daquilo que Hélio Oiticica identificou como condição crônica da sociedade brasileira, a “convi-conivência”4. Ou seja, conviver com conivência é aceitar correntemente um código de conduta social e comportamental que reprime e dilui a ideia de embate inerente à política na esfera pública. Em oposição a tal condicionante, a arte parece querer resistir e daí renovar percepções, discursos e retratos postos à sombra.

É nessa frente de ação e resistência que Rafael Pagatini (Caxias do Sul, RS, Brasil, 1985) – artista nascido já nos anos da redemocratização brasileira – protagoniza sua prática artística, tendo um território, a cidade de Vitória e seu contexto, como âncora de referência. Na então anomalia de um estado de exceção, a cidade em questão foi lugar estratégico do plano de poder daquele regime, forjando-se ali um modelo socioeconômico a ser aplicado em todo o país e, de forma mais ampla e violenta, a perspectiva de uma de nação una. Essas ações foram estrategicamente propagadas pelos aparelhos do estado brasileiro, de mãos dadas com o setor privado – patrimonialista, produtivo e financeiro.

Em Fissuras, termo que também designa esse corpo aberto de trabalhos, Pagatini cascavilha e investiga esse passado assombroso do Brasil, apropriando-se de informações, símbolos, imagens e relatos de uma memória ora esquecida, ora escamoteada. São nas fissuras físicas e simbólicas da correlação entre Vitória e o Brasil militar que o “artista-pesquisador” encontra, extrai e ressignifica um amplo repertório de nuances que transforma a compreensão das histórias pregressas, estabelecendo-se vínculos efetivos com o presente.

Dos arquivos públicos empoeirados e esquecidos aos fatos marginais do passado, o “artista-produtor” estabelece uma gradativa construção poético-interpretativa para, em primeiro plano, alertar e denunciar continuadamente; em segundo lugar, desconstruir a perversa história oficial desmistificando o período e, em terceiro, incidir sobre os signos e códigos de um projeto de poder que é também estético. E adiante, oferecer, junto aos seus pares, um novo caminho de experimentação ao contemporâneo local.

Das cicatrizes arquitetônicas gravadas na parede expositiva da instalação Confidencial (2017) aos movimentos incessantes da barbárie desenvolvimentista no vídeo Cavalinhos (2017), Fissuras em percurso mobiliza sensorialmente e cognitivamente o espectador. O grupo de trabalhos em vista deflagra no público uma real conexão com o cenário atual do país, momento de crise política ampla e sem precedentes; ela própria anunciada ainda no mal fadado, incompleto e desatento processo de redemocratização. Colaborar, portanto, na restauração desse hiato, abrindo-se flancos ao futuro, é o fim último desse processo investigativo.

Diego Matos, Curador.

1 FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato Calado. São Paulo: Cosac & Naify, 2012, p. 115.

2 http://www.cnv.gov.br/

3 Nome que se toma emprestado do livro diário Retrato Calado: testemunho reflexivo do professor e jornalista, escritor e tradutor Luiz Roberto Salinas Fortes à respeito de suas experiências em cárcere e nas sistemáticas represálias e torturas sofridas em diversos momentos dos anos 1970. Considerado subversivo pelas suas ligações ao pensamento universitário à esquerda e aos movimentos de resistência política ao estado de exceção, Salinas Fortes foi figura protagonista no âmbito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, especialmente no que concerne ao pensamento rousseauniano e sua crítica. O professor veio a falecer prematuramente em 1987, pouco antes do lançamento de seu livro, muito em decorrência das seqüelas adquiridas pelas torturas passadas naqueles anos de chumbo.

4 Termo empregado pelo artista Hélio Oiticica em seus escritos e reflexões desde os fins dos anos 1960 para pontuar a tal paralisia social brasileira frente ao circuito conservador das artes, o que afetava a potência experimental da prática artística. Em dado momento, por contingências sociopolíticas, torna-se conceito preciso, em nosso entender, para identificar problemas de ordem ética que conduzem, por exemplo, à aceitação da violência de estado. Para uma melhor compreensão contextual desse termo composto vale consultar os textos Brasil Diarréia e Cara de Cavalo.