MERCEDES LACHMANN
“Flecha”
Casa Brasil
Curadoria Cristiana Tejo
21/06 – 03/08/2025
Flecha
“Para cada discurso empedernido, uma gargalhada zombeteira zumbirá no vento feito um anti-amém, marafando letras e corporificando a palavra como a encruzilhada de onde as flechas voam para desassombrar o medo e encantar o mundo.”1
Pelas mãos do tempo, pontas de flechas seguem sendo os vestígios mais persistentes das culturas que nos antecederam. Encontradas em coleções arqueológicas em todo o mundo, elas carregam consigo não apenas o engenho técnico de quem as moldou, mas também os paradigmas de quem as interpreta. No olhar Ocidental, elas costumam ser lidas como marcas de estágios civilizatórios — mais ou menos “avançados” — conforme o grau de sofisticação de seu fabrico ou o tipo de matéria empregada. São indexadas às guerras, aos confrontos, às conquistas — uma narrativa linear da humanidade, pautada pelo progresso e pelo domínio.
Mas a flecha desta exposição, inicialmente apresentada no Museu Internacional da Escultura Contemporânea, em Santo Tirso, Portugal, não obedece a linhas retas. Ela é curva, múltipla, corpo, língua, símbolo e cura. Ela não rasga, costura. Ela não separa, convoca. Ao invés de extermínio, seu trajeto é encantamento. Recorremos aqui às palavras de Luiz Antônio Simas para escutá-la melhor:
“(…) As flechas lançadas atravessarão o redemoinho do tempo e cairão em lugar que só o caboclo sabe. Lanceiros, bocas e mãos de cura, capangueiros da Jurema, naturais do Juremá, mestres das artes do fazer, amansadores de feras, senhoras dos olhos d’água, das floradas e meninos que são os faróis do mundo, o que se ergue na invocação de suas presenças?”2
Nesta nova travessia, Flecha finca raízes em solo brasileiro, com as ervas no centro. A Casa França-Brasil, antiga alfândega, lugar de controle e circulação forçada de corpos e mercadorias — é reativada como território de memória e reverência. Nela, as ervas voltam a ocupar o centro, como testemunhas vivas de saberes interditados, marginalizados, mas jamais extintos. São as folhas que limpam e protegem, que firmam caminho, que sustentam a travessia. O núcleo desta exposição são os saberes das mulheres da cura, que atravessam gerações, povos e geografias: as erveiras, benzedeiras, parteiras, rezadeiras — que ressoam nas obras de Mercedes Lachmann como um coro subterrâneo, ancestral e presente, que resiste ao apagamento e segue pulsando em cada galho, folha e defumação.
Se antes o diálogo estabeleceu-se com o acervo arqueológico do MIEC, em Portugal, agora emerge um outro tipo de arqueologia, não mais centrada em busca de vestígios de poder, mas atenta no desenterro de saberes silenciosos, subterrâneos e femininos. A curvatura da flecha se alinha à das costas de quem colhe, de quem cuida, de quem reza. É nesse gesto de inclinar-se para a terra que a exposição se ancora: reverente, sensível e escutante.
Convidamos quem chega a deixar-se atravessar por essa presença viva das ervas e das mulheres que as conhecem. Que possam escutar, com o corpo todo, o sussurro que vem da mata, das mãos, da fumaça — e que reencontra, em cada visitante, a possibilidade de se encantar de novo com o mundo.
Cristiana Tejo, curadora
1 SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Flecha no Tempo. Rio de Janeiro: Morula, 2019, p. 5. 2 SIMAS e RUFINO, Flecha no Tempo, p.7.