MERCEDES LACHMANN

há céu por toda parte

Texto Marisa Flórido

Gaby Indio da Costa Arte Contemporânea

20/09 – 05/11/2022


Há algo de alquímico nestes experimentos artísticos de Mercedes Lachmann. A sala expositiva recorda-nos um dos modos mais usuais de se representar pictoricamente o ateliê do artista entre os séculos XVI e XVII: o laboratório do alquimista. Vidros, objetos e líquidos preenchiam o ateliê, onde se processaria a transmutação e purificação dos elementos, onde se realizaria a obra que, deixada à posteridade, transgrediria a morte. Um ateliê que encerrava magia, arte e ciência, no qual a sabedoria secreta do artista-alquimista buscava desvendar os vínculos ocultos que atam seres e coisas, o mistério da matéria, da criação e das metamorfoses.

E, no entanto, se há algo de alquímico nos experimentos de Mercedes, trata-se sobretudo de perceber a vida como dança alquímica, de ouvir o sussurro das plantas, de aprender com elas a beijar o céu. Pois o céu sempre correspondeu a esse beijo, doando-lhes a energia que elas transformam nessa matéria química, que se move e se molda em infinitas formas viventes. Oxigênio e luz. É por essa transdução de energia solar, essa comunhão que ocorre, em seu corpo vegetal, entre céu e terra, entre sol e este planeta verde, que há vida. Como fala Emanuele Coccia [A vida das plantas], autor caro à artista, a vida é um fato celeste, tudo o que vemos, respira e move não é senão céu; e, se a vida é também um fato vegetal, é porque está nele a força cosmogônica, contínua e perpétua, que cria o mundo dos viventes. Há uma sabedoria secreta, decerto, mas são antes as plantas a nos ensinar.

Mercedes coleta folhas que encontra por suas andanças, troncos que restaram dos “arrastes” (assim nomeado, por madeireiros, o deslocamento das árvores derrubadas até seu escoamento), ervas com propriedades medicinais e mágicas para compor o que define como seus jardins regenerantes. Regenerar pela arte a vida desses seres em fim de ciclo, entender com eles a respiração que dá ritmo e forma à nossa imersão no mundo, aprender enfim a capacidade metamórfica de seu pensamento. Reconhecer que as plantas pensam é deslocar o homem de um lugar tão privilegiado quanto narcísico como único ser dotado de consciência, palavra, espírito.

Quimeras afirmam que a vida é uma força telúrica que hospeda, se mistura e se metamorfoseia em uma pluralidade de vidas, que somos seres híbridos em inextricável interdependência. Em Arrastes, os troncos abatidos ganham pulmões e carícias de vidro, que se amoldam à ferida da árvore morta, como se, para a dor vegetal, fosse urgente o unguento que lhes devolvesse o que é sua maior dádiva: o sopro de vida quando tudo começou a respirar.

Tropismos e Campos de força compõem uma partitura cósmica. São campos de energia regenerante (a transmutação em tubos de ensaio das forças curativas e mágicas de folhas como lavanda, camomila, urucum); de energia cromática (os tons de sépia, amarelo, verde que derivam da mistura com a água); de energia sonora (porque desenham uma partitura de tons e vórtices de uma música cósmica mundana que traduz em visualidade o que nos falam as plantas).

Se toda cosmologia precisa partir de uma reflexão botânica, é porque toda forma de vida é uma forma de mundo que carrega o céu, a mistura quimérica de que somos feitos, suas transmutações perpétuas, e o movimento do astro como este aqui em que vivemos. Há céu por toda parte.

Marisa Flórido