MANOEL NOVELLO

Tempo e Lugar

Curadoria e texto Luiza Interlenghi

Gaby Indio da Costa Arte Contemporânea

29/04 – 31/05/2019


As pinturas e desenhos de Manoel Novello examinam o impacto mútuo entre cor e desenho. Desafiam certo legado da pintura e da arquitetura do século XX, que convergiram na valorização da estrutura geométrica do espaço. Livre da imposição de pureza formal, sua poética retoma o espaço modernista à luz de uma contraditória ordem sensível, subjetiva, local; marcada pelo artesanal, por tentativas, falhas e conquistas. O artista testa as margens contemporâneas daqueles conceitos e de suas oposições – pintura e desenho, cor e linha, plano e grade geométrica. Com formação em arquitetura na FAU, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, em pintura, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Novello ressignifica a ideia de construção implicada nestas práticas, por meio de tramas e derivações da cor. Mas força seus limites. Sobrepõe dois tipos de grade: a linear isométrica (em diagonal), associada à arquitetura, e outra retangular, que remete ao formato do quadro na pintura de paisagem. Entretanto, as desestabiliza, instaura tensões entre ambas – enquanto as ortogonais concorrem com as bordas do quadro, as diagonais sugerem a terceira dimensão e uma alternância para o espaço exterior.

Entre fugas e pausas, na pintura Jaraguá, central em Tempo e Lugar, o curso do olhar é levado a investigar múltiplos atravessamentos de linhas e planos; a mapear a cor como espaço, na extensão da tela de grande formato. Na base do quadro, azuis, verdes, vermelhos, cinzas e negro estabelecem uma região densa percebida como próxima ao espaço externo. A luz dos brancos, na parte superior, sugere recuo, distância. Já as linhas, por vezes veladas por camadas sobrepostas, voltam à superfície pela emissão da cor. Jaraguá ativa estes fluxos em estruturas visuais que remontam ao que está fora – a cidade, o dia, os muros –, embora se afirme como pura pintura (no sentido modernista). O branco é tomado de modo ambivalente, como pigmento depositado na tela, mas também como luminosidade que toma o espaço. Aquela luz que invade o estúdio do artista, situado numa construção modernista voltada para a enseada de Botafogo, retorna, talvez, à pintura por intermédio dos brancos que aqui se expandem.

Essa luminosidade solar, que tende ao monocromo, tão própria do Rio de Janeiro, cidade em que vive, prevalece nas quatro pinturas horizontais da série Praia das Pedrinhas, de menor escala. As linhas mais superficiais, traçadas em relevo por acúmulo de matéria, têm o dinamismo reforçado por uma sombra vermelha que resta sob o branco. As demais são definidas pelo vazio deixado pela tinta arrancada. No eixo vertical, os retângulos não coincidem com o enquadramento, nem se completam nas extremidades. Para além das movimentações internas do olhar, de seu deslizamento inquieto, as linhas tendem a se expandir para fora. Porém, trazem de volta certo rastro do mundo: lugar, urbe.

Nas pinturas sobre papel da série Baía da Guanabara, a cor desafia intensamente as linhas com diferentes estratégias: por vezes conquista espaço e avança além do retângulo até a diagonal, por outras camufla as bordas, soma segmentos internos e agrega a vizinhança em massas de cor que desestabilizam as relações entre plano e espaço. Agrupados ou isoladamente, os retângulos de cor, que fortalecem a percepção do plano, são projetados para frente ou para trás. Por suas variações cromáticas, rompem a sucessão das linhas com lacunas, continuidades, alternâncias: instabilidades espaciais que não cessam nem se resolvem.

Tanto em Jaraguá como nas demais pinturas, a grade retangular em grafite é apenas entrevista. Contudo, nos desenhos, está claramente visível como base sobre a qual as diagonais são lançadas. Todos realizados em 2018 e numerados em sequência temporal (mês, dia, ano e hora), os desenhos partem de uma redução da cor à própria linha. Em três destes desenhos, hexágonos traçados em vermelho, verde e azul são projetados no espaço pela ilusão de figuras cúbicas. Mas, logo cedem e voltam ao plano. Noutra série, de diferentes formatos e duplas diagonais, é a variação na espessura da linha que pontualmente provoca esta ilusão (muros, caixas, construções urbanas). Ambos resgatam, em parte, leis da percepção estudadas na Teoria da Gestalt e caras aos concretistas, que demonstram como o olhar trabalha – une, separa, fecha, alterna – certos conjuntos de formas independentes. Novello mobiliza e acentua pela cor esta atividade perceptiva de modo a enfatizar sua dimensão temporal, na ordem da experiência. Se, nas pinturas, estas relações se tornam extremamente complexas, juntos, desenho e pintura, evidenciam o interesse do artista por uma posição entre sensibilidade e razão; como se, das experiências de Josef Albers com a percepção de cores próximas na série Homenagem ao quadrado, pudessem derivar tentativas impuras, para além do quadrado.

As investigações da cor e da linha, aqui reunidas, cruzam passagens decisivas do modernismo europeu (abstração geométrica), retomadas, na arte brasileira, na década de 1950, em que houve tensão e ruptura entre o conceito e a experiência sensível. Após a adesão inicial à objetividade da arte concreta, houve sua impregnação pela vida, com o neoconcretismo. Respaldados pelas reflexões de Mário Pedrosa sobre a necessidade de, no Brasil, contrapor a cultura à natureza, concretos e neoconcretos divergiram e rivalizaram quanto ao fluxo da vida na arte. Este esforço, radical em ambas as frentes, é reconsiderado nas décadas seguintes, quando o projeto moderno perde força.

Desde o período de formação, Novello observa uma geração de artistas para a qual estes movimentos e toda a pintura modernista é retomada criticamente. Já na primeira exposição – uma coletiva de pintura, com sete alunos do artista Chico Cunha, na Galeria Anna Maria Niemeyer no Rio de Janeiro (2008) –, os acontecimentos cromáticos têm importância em si, autonomia, entretanto contestam a exatidão e o cálculo. Já reverberam o viver, como as pinturas de Volpi que, como diz Novello, o intrigam por trazer “a cor como emoção”. Neste interesse paradoxal pela convergência entre estruturas geométricas e uma cor sensível e local, demonstra a observação da pintura de Lucia Laguna, que reconhece a fricção entre construção e improviso nas paisagens suburbanas cariocas. Indiretamente, o artista testa, ainda, o legado de Beatriz Milhazes, pelas camadas profundas de cor que emergem [na superfície?] e ativam uma noção de tempo na ausência da narrativa.

Em Tempo e Lugar, Manoel Novello explora as possibilidades expressivas contemporâneas da cor, tendo em vista os conceitos fundamentais daquele espaço moderno autônomo. Insiste, porém, que percebemos, sobretudo, “relações” entre cores e formas, redefinidas no curso do tempo em que o olhar habita o quadro. Então, embora demarcadas, tal como as cores e tramas regulares dos espaços urbanos, se mostram instáveis e cambiantes.

Luiza Interlenghi