LEONARDO VIDELA

“Estamos no jardim da planta baixa”

Curadoria Alexandre Vogler

Local: Paço Imperial, Centro, Rio de Janeiro

17/04 – 07/07/2024


A Visada do Urubú

Cinco das sete espécies conhecidas de urubus vivem no Brasil. Exímios voadores, podem planar por longas horas usando a ascensão das correntes de ar quente e percorrendo longas distâncias sem sequer bater as asas. Capazes de atingir 400 metros de altura, esses saprófagos tem a visão altamente desenvolvida, passam o dia mirando a superfície da terra de cima, como cartógrafos, achatando volumes e projetando casas como arquitetos – nunca aprenderam diferente.

Seduzidos pelo plano, desenham o mundo como um tabuleiro, subestimando a perspectiva de Brunelleschi. Lá do alto acompanham a cidade se transformando, identificando vestígios de habitações engolidas por jardins há muito des-domesticados. Nesse cenário, é possível entrever camadas de planos neutros e geométricos por baixo de arabescos esverdeados e contorcidos – algaves perfuram o concreto em busca de luz, dracenas, helicônias e calatéias escalam paredes; palmeiras, filodendros e bromélias desfazem a geometria de construções no mundo pós-antropoceno.

No fim, pinturas a guache, indicam: a humanidade se foi, auto vitimada; sobrou a ruina, a invencível vegetação e os urubus no céu. Esses últimos, símbolo da purificação e do renascimento no xamanismo, conservam ainda o poder da regeneração e da transmutação, fundamentais para o equilíbrio da vida na natureza. Na cultura do carioca é reverenciado por uma das mais belas e populares torcidas de futebol desde o episódio em que foi solto em pleno gramado do Maracanã, em 1969 – para em seguida, meio trôpego, alçar voo levando a torcida ao delírio. De lá de cima assistiu, com a varredura plana de uma pintura De Stijl, a vitória de seus súditos sobre o Botafogo. Neste mesmo ano emprestou sua visada para que Burle Marx desenhasse as calçadas de Copacabana, verdadeiras tapeçarias de pedra portuguesa, onde caminhos sinuosos circunscrevem áreas de cor pontuadas por vegetação de restinga. Um belo exemplo do ‘jardim da planta baixa’ oferecido aos privilegiados moradores dos altos prédios de Atlântica. Vale a pena ainda agrupar às referencias desta mostra o caso da outrora cidade de São João Marcos, no Vale do Café, inundada pela Light em 1949 e ressurgida no sec. XXI como ruínas, uma cidade fantasma de plantas baixas fundidas à Mata Atlântica. Restos de fazendas, fundações de casas e de igreja integradas à vegetação nativa; panoramas que, confiscados pela vista aérea de nosso protagonista, bem poderiam figurar nas paredes desta galeria.

As obras que circundam esse texto, produzidas por este reverente torcedor urubu, carregam mais uma nomenclatura de jardim (fictício) a se juntar ao jardim tropical, ao jardim inglês, ao jardim japonês, aos labirintos, campos ecumênicos e sítios arqueológicos; todos, a sua maneira e em certa medida, resistindo e se impondo à arquitetura, embora suficientemente racionais para se afastar do conceito de paisagem. Um conjunto de pinturas entendidas como cartografias das tais ‘estruturas axiomáticas’ que a famosa historiadora da Columbia[1] menciona no celebrado diagrama que incluía os conceitos de não-paisagem e não-arquitetura, e que serve tão oportunamente para refletir sobre a visada do pintor ao conceber seus ‘jardins da planta baixa’.

Alexandre Vogler