BEL BARCELLOS

“Corpo Abrigo”

Galeria do Lago – Museu da República

Curadoria Isabel Portella

15/03 – 01/06/2025


Bel Barcellos

corpo abrigo

                                                               Uma gota de leite me escorre entre os seios.
                                                               Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas.

                                                               Meia palavra mordida me foge da boca (…)
                                                               Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida.
                                                               (…)
                                                               Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz.
                                                               Eu-mulher abrigo da semente, moto-contínuo do mundo.

                                                               CONCEIÇÃO EVARISTO

Quantas vezes a agulha perfurou o pano, quantos fios foram necessários para ligar o onírico em devaneios cheios de graça? Quanto tempo durou a gestação da arte? Para Bel Barcellos o tempo transcorre numa dimensão própria, onde a paciência e a repetição se fazem presentes para permitir um mergulho entre o racional e o imaginário.

Cada ponto exige uma pausa necessária para buscar na memória aquilo que constitui a sua essência. A força da herança familiar envolve toda sua obra e fala sobre autoconhecimento e o poder libertador da arte. As mulheres, que sempre estiveram ao redor, foram as sementes que marcaram seus fazeres com a energia, a resistência e a importância de atentar para os fios que conectam os diversos aspectos inerentes ao feminino. Ao ser criada a teia, o contemporâneo estará unido aos saberes ancestrais, remendando falhas, desatando nós com mãos firmes, conscientes da importância do trabalho como instrumento de expressão. E é nesse momento que se instala o tempo da delicadeza, do equilíbrio, da busca e dos muitos encontros. O bordado é encontro da agulha com o fio, do pensamento com as mãos, de gente com as memórias de vida.

Corpo abrigo nasceu da necessidade de divagar sobre o corpo feminino e o fluxo que une as mulheres numa irmandade colorida com as tintas do pó de barro, da terra, do leite materno e do sangue. No exercício da imaginação veremos as mãos das mulheres de várias gerações construindo a vida, assistindo à passagem do tempo numa conexão profunda da natureza com o divino. A mão que trabalha também abençoa, ampara. Diferencia os seres humanos de todos os animais, sendo um símbolo da ação, como a flecha disparada na direção de um alvo. “No movimento das mãos trabalho minha alma”, diz Bel Barcellos.

O corpo feminino abriga a vida que cresce, soberana, em suas entranhas. Abriga lembranças e invoca encantarias. É guardião da força e da vontade de tantas mulheres que, mesmo subjugadas, sobrevivem. Seu corpo fala do equilíbrio difícil entre doar seu leite e sangue, carregar sozinha o peso das múltiplas tarefas e, ainda assim, ser capaz de produzir delicadezas que emocionam pela beleza alcançada. Surge então a imagem da Mãe Rainha, Iabá, orixá feminina de tantos simbolismos. A criação, nutrição, sabedoria, justiça, a transformação e o amor são atributos das iabás, responsáveis pelo equilíbrio da terra e da vida. Bel utilizou contas de cerâmica que produziu e agrupou nos braços de uma pequena figura de mulher, bordada sobre lona, para contar dessas guerreiras que gerenciam a vida carregando o fardo de mil obrigações.

Em Oferenda, 25 pequenas esculturas de mulheres, nascidas do barro, compartilham um momento dos mais intensos. É a arte transcendendo o material, superando os próprios limites. Então nos é permitido ver o terrestre ligado ao divino por fios de algodão. Ao apresentar tantos corpos femininos abrigando outras vidas, a artista nos leva ao âmbito da sororidade, do instante de compartilhar conhecimentos, numa conexão muito íntima. Gerar, abrigar, amamentar e parir envolvem questões de dor e alegrias, de sofrimento e prazer que só quem já ofertou um filho ao mundo pode saber.

As obras de Bel Barcellos dizem muito mais do que se possa imaginar. Chegam carregadas do aprendizado e da energia de várias gerações de mulheres e formam um solo fértil de onde brotam as sementes compartilhadas. Elevam, ao surpreendente, o trabalho com as mãos, a delicadeza do bordado e da cerâmica. Pedem silêncio para que se possa mergulhar nesse rio e sabedoria para aceitar a inevitável passagem do tempo. Precisam de entendimento e desvelo para que se perceba que, por dentro, somos todos absolutamente iguais.

ISABEL SANSON PORTELLA