BEL BARCELLOS

Fios/Hilos

Curadoria e texto Sonia Salcedo del Castillo

MACAY, Museu de Arte Contemporânea de Yucatan, Mérida, México

2010


A vida por muitos fios Sonia

Fruir destinos, mediante linhas… Não à maneira das traçadas em nossas mãos. Antes, quais veios de árvore multiplicados em ramos, que num dia florescem, noutro frutificam… E legando-nos sementes, germinam, nova e ciclicamente.

Melhor, pensar a vida por meio de fios progressivo-geometricamente expandidos, entre-cruzados, relacionados a imagens que, ponto a ponto, jazem em trama sobre tecido. À semelhança dos bordados, como nos trabalhos de Bel Barcellos, ora apresentadas.

Como bastidor que define o alvo da agulha ou carbono que transfere a imagem escolhida, as obras aqui reunidas traçam uma pesquisa auto-referenciada, graças a uma seleção de fotografias de caráter íntimo, quer por herança familiar, quer por afetividade diversa, mas, acima de tudo, por que somam recursos a uma possível retórica feminina desejosa por reinventar sua genealogia. Assim: da foto, primeiro desenho, depois decalque e, por fim, costura; à imagem, um ‘passado a limpo’, adicionado a distintos universos iconográficos, tais como anjos, flores, frases e versos de melodias a correspondências, sensibiliza o interesse romântico da artista acerca das dores e delícias do fato de se existir. Mas para tanto, além de imaginação, é necessário paciência…

Eis os traços de uma década envolta em miríades de fios e linhas, tecendo seu próprio tempo. Bel apresenta quarenta desenhos sobre papel, nove sobre lençóis e bordados (inéditos) sobre quarenta e um lenços, além de um vestido. Neles, corpo e espírito, razão e emoção polarizam os ciclos da vida. Contudo, enquanto os desenhos[1] lidam com os enigmas vitais sob a verve da transcendência feminina, como em De tão alvas, quase almas, em cujas silhuetas podemos vislumbrar bruxas ou freiras, libertinas ou libertárias, santas ou diabas e, assim, refletindo a respeito do que vemos ou imaginamos; os bordados ampliam a reflexão dirigindo-nos ao tempo em seus múltiplos sentidos. Ou seja: não somente cronológico, biológico, mas também, emocional, abstrato, enfim.

A começar por Icléa, vestido de casamento, simbolicamente de duas peças (saia e blusa), que apresenta o passado como futuro presentificado por fios e linhas: bordados sépia da linhagem da artista (grifo, de mulheres) e decalques azuis de fragmentos gráficos oníricos e textuais, como os extraídos de cartas de amor dos avos maternos da artista que adornam a indumentária. Seria uma elegia ou um

monumento ao tempo? Resta a pergunta…

Mas, pelo viés do humor cético, Bel Barcellos realiza uma homenagem à soberania do tempo no fluxo da vida, nas séries Aurora de minha vida, inspirada em viúvas (digamos) alegres sob ideias de que ‘a vida continua’, ‘tudo passa’ ou ‘nunca é tarde parta recomeçar’; e Eu era assim, cujos bordados, da infância a ossos sorridentes, lembra-nos da mortalidade, como o fato de ‘quanto mais velho se fica melhor se era’. Oh Cronus salve (nos)! Ele é senhor e conselheiro das angústias, em (Des)encontros, série motivada pelas separações inevitáveis à vida. O tempo é imensurável e onírico nas fantasias sexuais de Adormecer da razão que chuleia e desfia ondas de prazer e sedução, como quimeras e utopias eróticas. Também é hiato frígido, em Alone Together, que pesponta recém casados anônimos, solenes, posados para a posteridade. Ou, ainda, o tempo é abismo e desterro, em Lamento, costurando melancolias.

Nas dezesseis séries elaboradas, Bel Barcellos pensa a vida não por um, mais por muitos fios, transformando poesia têxtil em tempo táctil.

Salcedo del Castillo

[1] [1] “Alvas almas” (sete desenhos evocando religiosidade e espiritualidade); “Corpo estranho” (sete desenhos remetendo a transes mediúnicos); “Encarnadas” (seis desenhos acerca de sacrifícios ou rituais); “Trabalho de mulher, brinquedo de criança” (10 desenhos relacionando a espiritualidade existente entre a curiosidade pueril e a índole feminina); “Elas vêm trazer encanto ao mundo” (cinco nus); “Desejo” (sete desenhos acerca do prazer e sedução) e, por fim, “Desassossego” (sete desenhos sobre a angústia do estado insone).
Observe-se nesta última série o contraponto estabelecido entre a imanência do corpo e a transcendência do espírito. O corpo, como chumbo, não liberta a leveza do espírito. Ressalte-se, ainda, o fato de nessa série a indumentária não ser alva, mas sombria.