ArtRio 2022

Projeto Curatorial Theo Monteiro

A CAIXA DE FERRAMENTAS

O interesse da humanidade por entender sua origem, o que a constitui e o que forma tudo o que a rodeia é quase tão antigo quanto a própria. Para dar conta dessa curiosidade primordial, recorreu-se tanto a relatos e mitologias de natureza religiosa quanto a, posteriormente, explicações e teorias de natureza científica. Embora possuam metodologias diferentes, ocorre algumas vezes de religião e ciência coincidirem em seus modelos explicativos. Ambas acabam nos fornecendo uma espécie de “caixa de ferramentas” para a compreensão do universo.

Pensando na metáfora da caixa citada acima, embora opere em terreno diferente, a arte também pode nos fornecer algumas dessas ferramentas. A presente curadoria apresenta uma seleção de artistas que, cada um à sua maneira, acabam fornecendo alguns elementos que ajudam a entender o universo que habitamos, em diferentes escalas.

A pintura de Manoel Veiga leva tal debate para uma proporção cósmica.  Engenheiro de formação, trata-se de um artista profundamente familiarizado com a linguagem das ciências da natureza e das leis da física. Em suas pinturas, como a que estará exposta na feira, vemos um conjunto de formas e cores dispersas pela tela. Em um espaço construído meticulosamente, esse corpo pictórico se espalha e se organiza a partir de leis da física.  A ideia aqui é usar as mesmas leis que regem o cosmos como ferramentas, através de muitos procedimentos desenvolvidos pelo artista, para organizar o trabalho compositivamente. O resultado torna tais pinturas bastante similares a formas galácticas, como aquelas vistas em fotografias tiradas por telescópios e coloridas artificialmente.

Saindo, mas nem tanto, de uma escala tão imponente, chegamos a um universo que nos é mais próximo: o dos seres vivos. Nessa chave podem ser apreciadas poéticas de artistas como Mercedes Lachmann e Rosângela Dorazio. A primeira tem na forma orgânica o ponto crucial de sua pesquisa. Diferentemente de Veiga, que a aborda em escala aumentada, Lachmann se vale de materiais que compartilham escala biológica: madeiras, vidros, essências, metais e formas vegetais. Não a interessa o material pura e simplesmente, mas seu caráter fluído, dinâmico e vivo. A artista, ainda que por vezes trabalhe com matéria morta, busca lhe bafejar um sopro de vida, como vemos em seus “Arrastes”, nos quais, sobre pedaços de madeira, acrescenta e molda vidros fluídos e pulsantes. A pesquisa de Rosângela Dorazio também lida com a forma orgânica, porém discutindo também questões como a natureza da representação. Na série chamada “Mato Dentro”, executa uma série de desenhos de plantas e espécies vegetais nativas do Brasil, e por cima dos mesmos entorna café, o que confere a tais trabalhos um caráter liquefeito, instável, de uma figuração que se desfaz e de uma imagem que fica no limiar da perda do significado.

Por fim, chegamos à escala humana do universo. Pensando numa dimensão urbana e arquitetônica, temos o trabalho de Manoel Novello. Em sua pintura, se sobrepõe linhas, planos e cores, com seu caráter acentuadamente geométrico. Não se trata, no entanto, de uma geometria rígida, inóspita e resultado única e exclusivamente de cálculo. Nelas percebemos luminosidade, movimento, textura. Seus títulos, longe de serem decorativos, trazem nomes de topônimos e geografias do Rio de Janeiro e do Brasil, como: “Sumaré”, “Itanhangá” e “Costa Brava”. O acúmulo de elementos presente nessas mesmas telas nos remete a nossas cidades, nas quais igualmente elementos arquitetônicos e viários se acumulam. No trabalho de Novello, todavia, tal sobreposição não impede que as coisas deixem de existir ou esmoreçam: pelo contrário: tudo se mantém vibrante e firme.

Sem sair de uma esfera arquitetônica, mas agora vinculada a um aspecto mais intimista, há o trabalho de Andrea Brown. Também geométrico, ele, ainda que disposto de forma regular, se assemelha mais a um enquadramento do que a uma representação. Sob quadrados e retângulos de madeira, vemos fotografias de céus, mares e outras tantas paisagens que, presentes em nossos cotidianos (e que muito dizem sobre a biografia da artista, que, carioca por excelência, é altamente familiarizada com tais vistas), nos evocam lugares de memória, afeto e domesticidade, afinal, muitas dessas vistas e enquadramentos por ela criados trazem referências de arquiteturas domésticas, como cobogós e azulejos.

Abandonando uma escala arquitetônica e chegando ao elemento humano pura e simplesmente, temos as fotografias de Daniela Vignoli. Na série realizada em viagem para a Índia, a artista se volta não para a grandiosidade de seus monumentos ou paisagens, mas sim para o cotidiano de seus habitantes. Acontecimentos banais, como camelos descansando ou uma criança brincando com um cachorro, no entanto, ganham um aspecto dignificado, imponente, o que Vignoli obtém através de uma minuciosa escolha de luzes e cores, que, em se tratando do oriente, são profundamente exuberantes. Já pensando em uma esfera biográfica, tem-se a série “O rio abaixo do rio”, de Bel Barcellos, na qual a artista faz uso de crochês e frivolités feitos por suas avós e tias há muitas décadas atrás, ao lado de seus desenhos bordados. O que ocorre nestes trabalhos é uma releitura de acordo com sua poética: se, no passado, essa técnica tinha uma finalidade meramente decorativa, aqui ela se une ao aspecto narrativo e por vezes onírico do trabalho da artista, que assim termina por dar continuidade e atualizar todo um ofício historicamente associado ao feminino.

Desta forma, indo da dimensão cósmica para a biográfica, da orgânica para a arquitetônica, da biológica para a humana, a presente seleção acaba por oferecer algumas “ferramentas” utilizadas pelos artistas para entender as diferentes instâncias que nos compõem.

                                                                                                                           Theo Monteiro

Pavilhão Mar, Stand V3, Marina da Glória, Rio de Janeiro

14 – 18/09/2022