ANNA HELENA CAZZANI, BOB N, ELOÁ CARVALHO, MARCUS ANDRÉ, PEDRO CAPPELETTI e RICARDO BECKER

Cruzamentos insuspeitos

Curadoria e texto Luisa Duarte

C Galeria em parceria com Escritório de Arte Gaby Indio da Costa

24/09 – 04/11/2016


Essa é uma coletiva que se faz como um encontro às escuras, espécie de blind date. O cruzamento de seis poéticas distintas no espaço de uma pequena galeria sublinha, simultaneamente, a singularidade de cada obra e a possibilidade de diálogos insuspeitados. Anna Helena Cazzani, Bob N, Eloá Carvalho, Marcus André, Pedro Cappeletti e Ricardo Becker apresentam trabalhos muito diversos uns dos outros. Mas mesmo aí, nesse quadro heterogêneo, próprio da contemporaneidade, é possível detectar a reincidência de algumas questões, tais como a convergência entre cálculo e acaso, a formação de paisagens improváveis, assim como a união de duas linguagens em uma só obra.

A escultura de Anna Helena Cazzani, Sem título, instalada em um dos cantos da galeria, conforma-se como um desenho no espaço. Feito somente de fios negros, trata-se de um trabalho que nos faz lembrar certos momentos do minimalista norte-americano Fred Sandback, ou ainda algumas esculturas de Waltércio Caldas. O vazio é deliberadamente incorporado, tornando-se produtor de sentido, bem como toda a arquitetura à sua volta é ativada. Esse misto de escultura e desenho está a todo o tempo travando um diálogo com o chão, o teto e as paredes. O que o completa é o nosso corpo que, assim como o da artista no momento de sua realização, é posto à ver espaço e obra sob novos e diversos ângulos.

Uma paisagem cuja matéria é o tempo. É assim que nos aprece Não sei se tudo errei ou descobri, de Bob N. O vidro estilhaçado dentro de uma caixa transparente forma uma espécie de linha do horizonte cuja matéria são os vestígios de uma dissolução. Ou seja, vivem aí, simultaneamente, as dimensões espaciais e temporais. Os fragmentos de vidro seriam uma espécie de mar sobre o qual o tempo fez o seu trabalho e tratou de estilhaçar.

Não sei se tudo errei ou descobri conforma-se como uma pintura de paisagem possível para tempos esgarçados como o nosso.

Eloá Carvalho, através dos seus desenhos e pinturas, se apropria de rastros do mundo “real” para criar um universo a um só tempo poético e crítico sobre esse mesmo mundo. Ali está instaurado um modo de representar em tudo oposto a esse nosso, acelerado, fragmentado, disperso. Suas pinturas, desenhos e escritos remetem ao gesto introspectivo e delicado de uma obra que encontra na literatura – Alfonso Boys Casares é um exemplo – um espaço de diálogo. Uma reflexão sobre o estatuto da imagem e da representação nos dias hoje atravessa toda a sua obra. A série Pequenas tristezas, hoje apresentadas, evoca, de modo delicado e lírico, uma narrativa em fragmentos. São desenhos, anotações, pinturas, que existem sem o compromisso com uma única linguagem, mas sim afirmando uma aposta na possibilidade de construir sentido dando as mãos para os fragmentos.

As pinturas da série Hallways, de Marcus André, são todas realizadas sobre caixas de madeira. Valendo-se de uma paleta que passa por diversas cores, do vermelho ao preto, do verde ao lilás, o artista evoca aqui as pequenas maquetes utilizadas no passado para se projetar a boca do palco de teatros. Há ainda, segundo Marcus André, uma referência às entradas de prédios públicos construídos no centro do Rio de Janeiro na década de 1940. Entretanto nada disso se dá no plano da figuração direta. Há antes um jogo sedutor composto de formas geométricas que instauram um espaço generoso visualmente e grávido de possíveis narrativas.

A obra de Pedro Cappeletti, 49 tentativas de desenhar um quadrado de tecido ao vento, soma-se às demais como uma voz que une, simultaneamente, ordem e acaso. Na parte superior de cada trabalho, uma mescla de pintura e desenho, uma camada densa de preto parece ter escorrido até um ponto determinado. Claramente a força da gravidade ali atuou de maneira a fazer com que tudo aponte para baixo, mas não chegue a desabar. Composta de inúmeras partes que formam um só todo, 49 tentativas de desenhar um quadrado de tecido ao vento, caminha na linha tênue entre cálculo e imprevisibilidade. Há tanto a face controlada pelo artista, e aquela fabricada, à sua revelia, tempo e a gravidade.

O trabalho de Ricardo Becker evoca a dimensão da pintura mas finda por ser, antes, um espaço de atrito, cujo síntese encontra-se no título, Cisco. Como já afirmou Fernando Cocchiarale: “Ciscos estão à solta e o vento pronto para levá-los aos nossos olhos. Talvez eles sejam uma das poucas maneiras de ver o vento – ainda assim, por meio de seu efeito mais incômodo, posto que compromete o ato indicial que negativamente evoca. Visualizá-lo, de maneira poética, foi o desafio maior que o artista se propôs”. A obra apresentada em Cruzamentos Insuspeitos se configura como uma paisagem turbulenta. Ali dentro galhos, espelho, talco, incorporam o espaço da galeria ao trabalho, assim como o nosso movimento, tudo em favor de uma visão múltipla e borrada. Como um olho atravessado por um cisco, olhamos e somos vistos através da obra de Ricardo Becker.

Luisa Duarte