ANNA HELENA CAZZANI

[ espaço ] entre

Curadoria Paulo Sergio Duarte

Galeria de Arte Maria de Lourdes Mendes de Almeida, Centro Cultural Candido Mendes, Rio de Janeiro

16/09 – 30/10/2015


Tensão Exata

As esculturas encontram-se sob a tensão exata: não exigem nem mais, nem menos. Seu material elástico desenha no espaço. É isto: são desenhos no espaço que solicitam, na sua tridimensionalidade, múltiplas posições de nosso corpo na sala para observarmos plenamente suas travessias sempre retas. O espaço, entre as linhas, redefine o que antes chamávamos simplesmente de vazio. Agora o vazio está ativado pela presença das esculturas que, apesar de discretas, se impõem aos nossos olhos. Conversam intensamente com a modernidade e com o minimalismo, mas não esqueçamos que suas torções, suas diagonais, o modo como atravessam o espaço, têm muito a ver com o nosso passado neoconcreto, ainda vivo e fonte de ideias para os artistas que, como Anna Helena Cazzani, não aderiram às flamejantes figurações contemporâneas.

O fio negro se amarra a pontos nítidos, nada disfarça, incorpora seus pontos de apoio ao modo contemporâneo: estão presentes os ganchos, os tensores, as dobras das pontas dos fios dos elásticos. Fosse moderno, poderia embutir essas âncoras no chão e na parede, e deixar apenas os fios visíveis; acrescentaria uma falsa pureza às esculturas, seriam linhas sem amarras. Mas agora a escultura pede para se exibir inteira, sem disfarces, sem máscaras. Paredes, tetos, chão são seus pontos, não de apoio, mas de exercício da exata tensão.

Uma das esculturas se excede com uma beleza diferente: duplica seu chão, seu ponto de tensão, escolhe pedras para se apoiar. A natureza se faz presente literalmente, aos pedaços, de modo bruto, e forma um chão sobre o próprio chão. Agora há um apelo direto à força de gravidade, o peso das pedras explicita todo o peso. As forças que nas demais esculturas estão virtualmente visíveis na tensão das linhas, nesse trabalho duplicam o ponto de tensão: temos dois chãos para a escultura, o das pedras, sobre as quais se esticam, e o chão da galeria. Mas vejam que o esforço para traçar as linhas no espaço é sempre o mesmo. Esta, porém, se ergue sobre a mobilidade das pedras, e modifica tudo. As esculturas estão previamente desenhadas conforme seus pontos de tensão. Mas a fisionomia desta posso modificar, mudando a posição das pedras. Poderá ser um passo, com uma perna para trás e outra para a frente; poderá ser um salto, como sugerem suas linhas; ou poderá simplesmente se apresentar em posição de descanso, com as linhas lado a lado. Nessa imaginação de movimento das pedras, transgrido o rigor da construção. A escultura nunca poderá estar em posição de descanso, suas linhas exigem a tensão. Nunca estará tampouco em posição de sentido, estará sempre insinuando um movimento: o salto ou a marcha.

Essas esculturas, na vida contemporânea, merecem atenção. Exercitam uma simbiose do desenho com o espaço muito importante. Se pudéssemos desenhar no vazio, sem nenhum suporte, estes seriam os desenhos que se materializam exatos: as esculturas de Anna Helena Cazzani.

Já os desenhos, fiéis, exatos como as esculturas, nos obrigam a uma outra genealogia. O branco sobre o preto não permite a aventura da cor, ele obedece a uma disciplina geométrica de ocupação do espaço. Alguns poderão lembrar-se da exposição recente de Richard Serra, no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Mas esta aproximação a meu ver não se sustenta. Enquanto os desenhos de Serra se esparramam sobre o papel em ocupações ditadas pela vontade, aqui, uma disciplina, sobre pequenas superfícies, organiza a ocupação do preto sobre o papel em linhas; as linhas retas são fronteiras exatas contra o branco do fundo. Se eu fosse assimilar esses desenhos a alguma herança, seria com as esculturas planas, sobre paredes, de Everardo Miranda, do início dos anos 1980. Mas Anna Helena era muito nova e não podia ter visto o que nunca mais foi apresentado.

Posso imaginar, viajar, como dizem, e entender que os desenhos se esforçam para preencher os vazios da escultura. Acho mesmo, na minha fantasia, que os desenhos são o esforço de preenchimento do vazio das esculturas e, nesse sentido, se complementam. Os desenhos, tão rigorosos, provocam um estranhamento no mundo contemporâneo, tão cheio de festas e de cores. Querem reviver uma disciplina que não se encontra mais no mundo em que estamos. Vêm firmes e se afirmam para dizer: não.

Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2015.

Paulo Sergio Duarte