ANDRÉ ANDRADE

Mas quem me mandou a mim querer perceber?

Texto Alvaro Seixas

Galeria Maria de Lourdes Mendes de Almeida, Cândido Mendes Ipanema, Rio de Janeiro

19/09 – 27/10/2018


O sagrado e o profano tecnológicos

“O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele mesmo…”

Merleau-Ponty, “O Olho e o Espírito”

As pinturas do artista carioca André Andrade presentes nesta individual exploram dois gêneros tradicionais da pintura: o retrato e a paisagem. Mas tratam-se de visões e narrativas que fazem colidir o tradicional e o novo. O artista cria “black mirrors” (roubando o nome da série de TV) de certos movimentos históricos da arte ao recriar os efeitos como o desfoque e o glitch. Neste, as imagens são multiplicadas, distorcidas, sobrepostas e têm suas cores desarranjadas (deformações virtuais que se tornaram populares e lúdicas por conta de aplicativos de edição de foto para smartphones). Nas obras de Andrade, monstros pixelados e arroxeados convivem com elementos plácidos de cores naturalistas, pulsões do belo e do grotesco ativam o cubo branco e capturam nosso olhar.

Andrade flerta com o que há de aterrorizante e ao mesmo tempo confortavelmente familiar na pintura; ou o que há de mais sedutor e também angustiante na tecnologia. Apesar de sua verve “digital” e atual, os trabalhos do artista carioca podem ser aproximados do Romantismo, Impressionismo e Pós-impressionismo. As imagens de Andrade se completam no encontro entre “o olho e o espírito”. Evidenciam a fragmentação ou fluidez das representações que nos recordam poeticamente: as sensações do mundo só são por nós compreendidas ou decifradas, mesmo que provisoriamente, depois de nossas visões e mentes estarem em sintonia.

Suas figuras se refletem e se distorcem na água — ou seria na superfície da pintura? — obliterando e colocando em suspensão a sua individualidade humana. Torna-se descaracterizada por pinceladas que me levam a pensar em certos cenários notórios e inquietantes da cultura pop, em particular o Crystal Lake da franquia cinematográfica Sexta Feira 13. As pinturas de Andrade são “TVscapes” ou “MOVIEscapes”, por vezes copiando diretamente imagens de programas de TV; em outros momentos constituindo ecos imprecisos de imagens luminosas da cultura de massa ou de álbuns de família que povoam nossas memórias. Pixels e cores RGB operam como fontes para um neo-divisionismo pop. Pelas mãos de Andrade, os defeitos da imagem digital são traduzidos em acertos pictóricos. Sobre suas águas, refletem as cores espetaculares de Sorolla, a frieza fotográfica de Richter e o terror pop de Peter Doig.

Os planos líquidos representados por Andrade refletem o narcisismo da pintura: individualista e sedutoramente equivocada, que teima em confundir realidade com ficção. Andrade gosta de ressaltar que alguns de seus trabalhos são feitos a partir de sua própria autoria. Um lago refletido em si mesmo, quase uma metáfora para a tradição da pintura que muitas vezes se faz inevitavelmente metalinguistica. Pintar é expor a linguagem e as particularidades do fazermos pictórico. A tela rasgada de Fontana; a moldura de Klimt, a velatura de Goya; o empasto de Van Gogh; o sfumato de Da Vinci; o craquelado intencional de Luc Tuymans; a planaridade ideal/hiperreal de Ingres ou Richard Estes. Quadros que, tais quais os de Andrade, imitam e recodificam o mundo sem deixar de expor as artimanhas e falsidades próprias da pintura para tal recodificação.

Por mais narrativa e ilustrativa que seja uma tela de Andrade, sempre está lá algum indício que expõe o seu caráter ilusório. O uso do airbrush desmistifica a bravura das pinceladas de Monet, Sorolla e outros precursores do gestualismo e, neste sentido, Andrade se aproxima mais da arte pop dos EUA e suas críticas jocosas ao expressionismo abstrato.

Na teatralidade impecável do barroco italiano, a ilusão serve ao sagrado, mítico, místico e intangível: anatomias irreais, anjos, abelhas gigantes e visões luminosas do infinito. Nas obras de Andrade notamos algo desse paradoxo artístico que junta conhecido e desconhecido, exposto na ilusão visual que imita com maestria coisas que nunca vimos. Mais uma vez somos iludidos e convencidos pela pintura de que o que estamos vendo pela primeira vez é uma velha e conhecida realidade.

Erraremos se falarmos que os trabalhos de Andrade são meros produtos de uma era de vídeos digitais distorcidos ou fotografias pouco nítidas. Seu trabalho reforça a ideia de que a arte trata de um mistério que é atemporal, eterno e imutável ao qual não fomos e nunca seremos por completo apresentados. Há algo de muito sagrado entre os glitches profanos de Andrade, basta abrirmos nossos olhos e espíritos para a pintura.

Alvaro Seixas