ANA MUGLIA

…de propriedades quase musicais, no espaço em que se movem os viventes

Curadoria e texto: Fernando Cocchiarale

Paço Imperial, Rio de Janeiro

17/12/2016 – 19/02/2017


Sobre a construção de “propriedades quase musicais, no espaço em que se movem os viventes”.

A exposição “… de propriedades quase musicais, no espaço em que se movem os viventes” (título extraído por Ana Muglia de trecho de Eupalinos ou o arquiteto, de Paul Valéry) é, segundo declaração da própria artista, “uma mostra de pintura em madeira de grandes formatos, série de desenhos sobre tela crua em pequenos formatos, algumas folhas do Caderno de artista sobre suporte de madeira e base de concreto e um vídeo, cujo foco é trabalhar as semelhanças visuais e rítmicas entre o espaço da construção arquitetônica e o da estrutura musical”.

Os diferentes meios técnicos utilizados por Muglia nesses trabalhos nos remetem às categorizações convencionais que traçavam, até recentemente, as fronteiras entre pintura, desenho e escultura.

Nesse sentido, destacamos trechos de seu depoimento que, direta ou sutilmente, evidenciam o fio condutor pictórico que atravessa o conjunto de sua produção: “uma mostra de pintura em madeira de grandes formatos”, “desenhos sobre tela crua”, “Caderno de artista sobre suporte de madeira” e vídeo sobre “semelhanças […] entre o espaço da construção arquitetônica e o da estrutura musical”.

Mas para a compreensão do sentido poético específico dessa pintura de Muglia que transborda os limites convencionais entre desenho, escultura e música é necessário averiguar tanto o sistema pictórico que norteia sua fatura (a escolha dos materiais de que são construídas e que as estruturam), quanto confrontá-la com questões pictóricas e poéticas formuladas pela arte moderna e por seus desdobramentos na produção contemporânea.

A redução da pintura aos seus atributos objetivos essenciais, concentrada na reiterada afirmação do plano pictórico (oposto à representação naturalista e ao ilusionismo permitido pela perspectiva e pelo sombreado que a marcaram entre a Renascença e a modernidade) deixou clara a importância do suporte ou das superfícies em que eram pintadas.

Tais suportes conectavam a atividade pictórica propriamente dita à superfície de um plano materialmente objetivo. Era necessário vencê-lo para a o triunfo da simulação do espaço (ou da cena) que acolhia a representação. Pinturas seriam, então, inseparáveis dos diferentes espaços que as acolheram e as perenizaram milhares de anos antes da invenção da escrita, portanto, antes de qualquer narrativa histórica. Dentre esses suportes, destacam-se a parede (de cavernas, templos e palácios) e, mais recentemente, a tela e o papel.

Foi somente a partir da segunda metade do século XIX, com a formação das primeiras vanguardas europeias, que a materialidade planar do suporte pictórico se generalizou para consolidar a modernidade aspirada. A produção artística, entretanto, continuou a explorar e a aprofundar novas possibilidades poéticas inauguradas pela investigação do plano pictórico.

Já na segunda metade dos anos cinquenta, Lucio Fontana, na série de pinturas Concetto spaziale, começou a fazer incisões com navalhas ou tesouras sobre telas monocromaticamente pintadas.

As incisões de Fontana nos revelavam de imediato que, ao contrário do conceito teórico de plano (Euclides), o plano pictórico – tela − possuía concretamente uma fina espessura: um outro lado que confinava com a parede sobre a qual o quadro era situado. Havia aqui uma crítica à “dimensão planar” que celebrava a superfície do suporte da pintura modernista, destinada à composição.

Muglia ultrapassa o debate sobre o plano pictórico para extrair das entranhas da parede, invisíveis ao olhar fruidor e à compreensão habitual, a organização material, espacial e cromática de seus trabalhos. É, portanto, uma pintura de afloramento, que reconstrói tais entranhas na superfície dos trabalhos. Finalmente é preciso esclarecer que diferentemente do construtivismo histórico, baseado em noção de estrutura análoga à da engenharia do ferro, as construções da artista exploram, sobretudo, a potência pictórica dos materiais por ela apropriados da construção civil brasileira (de onde extrai a sutil precariedade de sua pintura).

Fernando Cocchiarale