ANNA HELENA CAZZANI, ANNA PAOLA PROTASIO, BEL BARCELLOS E RICARDO BECKER

Lacunas preenchidas

Curadoria Gabriela Davies

Villa Aymoré, Rio de Janeiro

09/02 – 10/03/2019


Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. A vida é cheia de tais convivas, e eu sou acaso um deles, conquanto a prova de ter a memória fraca seja exatamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta.

Uma linha cruza um espaço. Tensionada em pontos particulares que criam sua forma. São traços espaciais que oferecem a ideia de volume sem este de fato existir. Em paralelo, fios são separados, amontoados, e mesclados de forma que o começo e o fim se tornam inexistentes; irrelevantes. Uma memória de uma história cuja importância está na trajetória e na ocorrência mais do que na sua conclusão. Como uma revoada de pássaros – cena ainda comum em nosso cotidiano, que já não lembramos mais quando esta foi vivida da última vez. Um encontro que leva além de expectativas, mas que somente detalhes daquele são lembrados no “após”. É saber de onde veio, mas sem lembrar do começo, é lembrar de um presente-passado ainda existente. Viagem contínua que é construída através de (re)interpretações, que está em constante mutação de um a vários corpos. Uma casa, uma cidade, que é carregada através de memória – falha ou não – para outros espaços que possibilitam sua compreensão total.

Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstancias. A quem passe a vida na mesma casa de família, com os seus eternos móveis e costumes, pessoas e afeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.

São tons claros, amenos e singelos, mas que no mínimo detalhe se nota a doutrinação do tracejar e de sua remoção. O que existe é tão importante quanto o que foi removido. Os espaços ganham a relevância da matéria em si. Uma sugestão de tensão improvável e delicada… de matérias que criam pares inusitados. Linhas que seguram, restringem, cortam volumes densos como os de esferas. Peças de engenharia, como torres imensas cuja densidade desaparece sob neblina. Área ofuscada, beirando o esquecimento. Espaço que cria novos vãos para outras formas virem a se formar. São chaves que abrem novos caminhos para a visão; espaços vazios que permitem seu preenchimento da forma que melhor apresentar. Mas que até a conclusão seja alcançada, inúmeras ponderações surgirão nesse trajeto.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas idéias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares, e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.

Machado de Assis, Capítulo LIX – Convivas de Boa Memória, “Dom Casmurro” (1899)*

Gabriela Davies

*Seria de elevada pretensão se meu intuito fosse me nivelar à tal Casmurro e o mestre por detrás. Mas à convite dele próprio, proponho aqui as lacunas à serem preenchidas. Ao texto na verdade, que está por se formar através da compreensão única do leitor. Se as lacunas estão preenchidas de fato, começamos então questionando como.